O Globo, Caderno Prosa e Verso, página 4, em 19/12/2008.
Papai Noel visto por Lévi-Strauss
Ruben Caixeta de Queiroz
No fim do ano, quando nossas ruas são iluminadas e nossas casas decoradas com a árvore de Natal, um clima de generosidade maior parece despertar entre nós, por um lado, enquanto por outro (minoritário) uma voz costuma se levantar contra o caráter mercantilista e pouco religioso desta data no mundo atual. De onde surgiu e o que significa a figura do Papai Noel? O final de 2008 se aproxima.
Pausa para uma pequena reflexão sobre Papai Noel e seu suplício, tema deste texto publicado por Claude Lévi-Strauss em 1951 no “Le Temps Modernes”, e editado pela primeira vez em língua portuguesa pela Anhembi em 1952. O livrinho ganha, neste aniversário de 100 anos do mestre francês, uma nova edição aqui no Brasil pela Cosac Naify. Aparentemente não haveria mais nada de novo a dizer sobre o assunto. Em entrevista a Didier Eribon no livro “De perto e de longe”, o próprio Lévi-Strauss diz que considerava o ensaio algo meio jornalístico e superficial, e que, por esta razão, não o julgava à altura de acompanhar as reflexões incluídas na coletânea “Antropologia estrutural".
Reflexão primorosa sobre a tradição no mundo moderno
E, no entanto, o ensaio nos parece muito atual e esclarecedor em vários sentidos. Antes de tudo, é uma luz sobre o fenômeno natalino e as festas religiosas de uma forma geral. Em segundo lugar, nele podemos acompanhar os primeiros passos sobre a metodologia de análise em antropologia estrutural. Por fim, encontramos ali uma reflexão primorosa sobre o já (de)batido (e lugar comum, na maioria das vezes) tema da junção ou disjunção entre a tradição e a invenção e sobre o lugar da tradição no mundo moderno.
O mote para o ensaio é um evento que ocorre em 1951, na França, quando as autoridades eclesiásticas denunciavam a incessante “paganização” do Natal, evento que culmina com o enforcamento e a queima de um boneco do velhinho barbudo nas grades da catedral da cidade de Dijon. Tal gesto simbólico versava contra a “mentira da crença” e a dominação do espírito francês pelo espírito da mercadoria americano, emblemático nas figuras como Papai Noel, Walt Disney e McDonald’s. Ontem, como hoje, os franceses compram ao mesmo tempo que temem o “sonho vendido” pela América.
Mas de onde surgiu Papai Noel? Ele veio direto das Américas para o continente europeu e espalhou-se rapidamente para todo o mundo? Estamos realmente diante de um fato novo que se implantou no lugar de uma velha crença ou costume, ou bem tal fato articulouse com os elementos já existentes para criar uma nova ordem? O vermelho do Papai Noel lembra-nos a figura do rei; a barba branca, as peles, as botas e o trenó lembramnos o inverno. Todo ano, o ritual se refaz, o homem comum ocidental constrói suas árvores de Natal, espera o velhinho descer pela chaminé, embrulhar os presentes nas meias e colocá-los dentro dos sapatos e debaixo da cama. Se a ele fosse perguntado de onde vieram todas essas idéias e condutas, muito provavelmente iria buscar uma origem nos países nórdicos, ou nos fundamentos da crença cristã.
Reflexo de Saturno, devorador de crianças
Papai Noel é um fenômeno moderno (não resta dúvida que a crença nele é uma crença no valor do dinheiro e da mercadoria; que todo presente tem que ser comprado antes de ser dado), ele não é uma pura invenção, e se “limita a recompor peças e fragmentos de uma antiga comemoração”. Esta é a tese do autor. Para ele “se nunca tivesse existido um culto às árvores nos tempos pré-históricos, que se prolongou em várias tradições folclóricas, a Europa moderna certamente não teria inventado a árvore de Natal.” Neste sentido, a crítica dos cristãos à “paganização” do Natal, se não tem fundamento, tem razão. Lévi-Strauss mostra como o culto do Papai Noel guarda conexões com os herdeiros do rei das Saturnais da época romana. Tais Saturnais eram as festas dos mortos por violência ou abandonados sem sepultura, e, diz o autor, “por trás do velho Saturno, devorador de criancinhas, alinhase como imagem simétrica o bom velhinho Noel, benfeitor das crianças.” Nesta linha, Lévi-Strauss dá outros exemplos para demonstrar os traços arcaicos do Natal, mas não com o objetivo de recuperar nele “vestígios” e “sobrevivências”, ou de explicar sua função (“durante o ano todo, invocamos a vinda de Papai Noel para lembrar as crianças que a generosidade dele será proporcional ao bom comportamento delas”; às crianças reconhece-se o direito de reivindicar presentes numa época limitada do ano, e não o tempo todo), mas de demonstrar (e esta é a metodologia da análise estrutural, contra o funcionalismo ou a análise historicista) as “formas de pensamento e comportamento que derivam das condições mais gerais da vida em sociedade”.
Neste sentido, dá um exemplo de um povo que não tem nada a ver com os ocidentais, mas que carregam um ritual e um mito similares àqueles que fundamentam a figura do Papai Noel: os índios Pueblo (sudoeste norte-americano) possuem um ritual no qual os personagens denominados katchina, encarnados e fantasiados em deuses e ancestrais, voltam periodicamente à aldeia para dançar e para punir e recompensar as crianças. Ora, este “costume” não poderia ter sido um empréstimo do costume similar europeu, ou o contrário, pois estes povos não possuíam qualquer tipo de contato no passado. E o que ambos “costumes” nos dizem de significante? Que há um dualismo entre, de um lado, os adultos e as crianças, e de outro lado, entre vivos e mortos. Eis o que está “por trás” destes personagens como Papai Noel, Katchina, cuca ou bicho-papão. Nestes rituais, tal como em vários outros ligados à iniciação, as crianças se opõem aos adultos tal como os mortos se opõem aos vivos. E os últimos, os adultos e os vivos, nem que seja por um curto período do ano, têm que se submeter aos desejos das crianças e dos deuses ou dos espíritos.
Curta inversão de hierarquia e das relações de poder
Eis o que podemos extrair deste breve livrinho de Lévi-Strauss: que na época atual vivemos no sonho das mercadorias, quando uma mão invisível parece nos guiar, tal como os presentes parecem descer invisivelmente pela chaminé e pelas mãos de Papai Noel, mas, no fundo, tudo isso não passa de um disfarce e de uma ilusão, que nos é permitido de tempos em tempos, como se as crianças tivessem força sobre os adultos, os afetos sobre as razões, o desapego sobre o dinheiro, o presente sobre a mercadoria, os mortos sobre os vivos.
Na nossa vida cotidiana, o homem e a mercadoria é que têm razão e a razão supera de longe a superstição. No Natal vivemos um sonho, que desperta do inconsciente e, talvez, insiste em dizer que, lá no fundo de nós, ainda há uma gota de generosidade irrestrita, um gesto desinteressado, que suspende a cobiça irrestrita e o desejo de consumir, de se dar bem a qualquer custo e a qualquer preço, independentemente do outro.
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