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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Bíblia: Livro e Leitura

Extraído de: CHARTIER, Roger. O Leitor – entre limitações e liberdade. IN: ---. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad.Reginaldo de Moraes. São Paulo: UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. (Prismas). p.88-92.

- Para voltar à questão que atravessa toda esta nossa conversa, a transformação da leitura pelo suporte que a materializa, você deve concordar que está provavelmente ameaçada a lectio divina, tal como a praticam as velhas mulheres de Rembrandt, munidas de óculos diante de seus in-fólio.
Desde a época de Rembrandt, coloca-se a questão se a Bíblia podia ser publicada em pequeno formato. A sacralização do texto, dizia-se, não podia resistir à indignidade do pequeno formato. Ela de fato resistiu à passagem do rolo ao códex, ao abandono do in-fólio e, sem dúvida, resistirá à passagem para o texto eletrônico.

- A bíblia em CD-Rom, que se começa a comercializar na França, é algo diferente de uma espécie de história sagrada lúdica, imprópria a toda postura meditativa?
O novo suporte do texto permite usos, manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais numerosos e mais livres do que qualquer uma das formas antigas do livro. No livro em rolo, como no códex, é certo, o leitor pode intervir. Sempre lhe é possível insinuar sua escrita nos espaços deixados em branco, mas permanece uma clara divisão, que se marca tanto no rolo antigo como no códex medieval e moderno, entre a autoridade do texto, oferecido pela cópia manuscrita ou pela composição tipográfica, e as intervenções do leitor, necessariamente indicadas nas margens, como um lugar periférico com relação à autoridade. Sabe-se muito bem – e você sublinhou os usos lúdicos do texto eletrônico – que isto não é mais verdadeiro. O leitor não é mais constrangido a intervir na margem, no sentido literal ou no sentido figurado. Ele pode intervir no coração, no centro. Que resta então da definição do sagrado, que supunha uma autoridade impondo uma atitude de reverência, de obediência ou de meditação, quando o suporte material confunde a distinção entre o autor e o leitor, entre a autoridade e a apropriação? Eu não sei se uma reflexão teológica se desenvolveu no mundo do texto eletrônico, mas ela seria absolutamente apaixonante, ao lado de uma reflexão filosófica ou de uma reflexão jurídica.

- Sem dúvida, ela mostraria que se pode distinguir uma abordagem católica ou luterana de uma abordagem calvinista. É assim: conforme as tradições religiosas, mas também conforme as tradições intelectuais ou as pertinências sociais, desenvolve-se uma multiplicidade de abordagens da leitura. Até o infinito?
Até o infinito, não. Ler, leitura, essas palavras armam ciladas. Existe algo mais universal? Há leitores em Roma, na Mesopotâmia, no século XX. É uma invariante, sempre se leu ou nunca se leu o suficiente, isto depende do ponto de vista. Aliás, como você diz com justeza, há esta multiplicidade de modelos, de práticas, de competências, portanto há uma tensão. Mas ela não cria dispersão ao infinito, na medida em que as experiências individuais são sempre inscritas no interior de modelos e de normas compartilhadas. Cada leitor, para cada uma de suas leituras, em cada circunstância, é singular. Mas esta singularidade é ela própria atravessada por aquilo que faz que este leitor seja semelhante a todos aqueles que pertencem à mesma comunidade. O que muda é que o recorte dessas comunidades, segundo os períodos, não é regido pelos mesmos princípios. Na época das reformas religiosas, a diversidade das comunidades de leitores é em ampla medida organizada a partir da pertinência confessional. No mundo do século XIX ou XX, a fragmentação resulta das divisões entre as classes, dos processos diferentes de aprendizagem, das escolaridades mais ou menos longas, do domínio mais ou menos seguro da cultura escrita. Poder-se-ia também evocar o contraste que se revelou, no século XVIII, entre os leitores de um tipo antigo, que reliam mais do que liam, e leitores modernos, que agarravam com avidez as novidades, novos gêneros, novos objetos impressos – o periódico, o libelo, o panfleto. A clivagem, aqui, remete a uma oposição entre cidade e campo, ou entre gerações.
O que se deve notar, e que é difícil para os historiadores e sociólogos, é o princípio de organização da diferenciação. Não há invariância ou estabilidade deste princípio. O que torna pensável um projeto de história da ou das leituras, que não caísse numa espécie de coleção indefinida de singularidades irredutíveis, é a existência de técnicas ou de modelos de leitura que organizam as práticas de certas comunidades: a dos místicos, a dos mestres da escolástica da idade Média, a de determinada classe social do século XIX etc.

- Os membros dessas comunidades, supondo que possamos identificá-los, imitam, pelo fato de terem sido beneficiados por uma aprendizagem, o comportamento da geração procedente, dos pais, ou pais eletivos. Aquilo que é radicalmente novo, com a revolução eletrônica atual, é que não há processo de aprendizagem transmissível de nossa geração à geração dos novos leitores.
É por isso que esta revolução, fundada sobre uma ruptura da continuidade e sobre a necessidade de aprendizagens radicalmente novas, e portanto de um distanciamento com relação aos hábitos, tem muito poucos precedentes tão violentos na longa história da cultura escrita.
A comparação com duas rupturas menos brutais faz sentido. No início da era cristã, os leitores do códex tiveram que se desligar da tradição do livro em rolo. Isso não fora fácil, sem dúvida. A transição foi igualmente difícil, em toda uma parte da Europa do século XVIII, quando foi necessário adaptar-se a uma circulação muito mais efervescente e efêmera do impresso. Esses leitores defrontavam-se com um objeto novo, que lhes permitia novos pensamentos, mas que, ao mesmo tempo, supunha o domínio de uma forma imprevista, implicando técnicas de escrita ou de leitura inéditas.

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