Em "Galiléia", autor usa Bíblia para contar história no sertão
Ronaldo Correia de Brito consegue narrativa de densidade e precisão
Romance é estréia de contista, cronista e dramaturgo no gênero; livro foge de regionalismos ao se fincar no presente e na globalização
Folha de São Paulo, Ilustrada, em 29/11/2008.
Na Galiléia original, nasceram Jesus e os apóstolos, com exceção de Judas Escariotes, natural da Judéia. Das tantas cidades da região, inclusa Nazaré, foram poucos os habitantes que acreditaram nos milagres, na Ressurreição ou mesmo na existência do Cristo.
Já na Galiléia do escritor Ronaldo Correia de Brito, uma antiqüíssima fazenda encravada no sertão dos Inhamuns, Ceará, a família Rego Castro prefere crer no que não vê, dialogar com os mortos, ocultar os estupros, esconder os assassinos e cultuar o adultério e conseqüentes bastardos.
Originários da mistura entre portugueses judeus e cristãos novos, índios de duas tribos e negros, quase todos do clã possuem nomes tirados da História Sagrada, na qual o Velho e o Novo Testamento convivem em alternância. E ainda usufruem da licença poética do autor, que atribui a uns o nome e a outros a lenda, como é o caso de Esaú e Jacó, cuja história do gêmeo bíblico predileto da mãe recai sobre outro parente.
Em sua estréia em romance, vindo de longa carreira como contista, cronista e dramaturgo, esse cearense de 58 anos recorta a Bíblia em um quebra-cabeça de novo encaixe -com muita habilidade e, sobretudo, intimidade, já que algumas personagens o acompanham em origem e trajetória: nascimento no sertão, passagem pelo Cariri, formação médica no Reino Unido e mudança para o Recife.
O mais próximo do autor é o narrador Adonias, médico que, em companhia de dois primos, retorna à casa paterna sob o pretexto de assistir à morte do avô, um sertanejo retado que deveria se chamar Abraão, mas, por insistência do padre de batismo, acabou Raimundo Caetano, com muita honra.
O outro primo, um que foi registrado como filho do avô e irmão do próprio pai, escondeu suas dores na Noruega, enquanto o terceiro caminhou a esmo entre Paris e Nova York, numa suposta carreira musical que se revela pouco artística.
"Mas o que fizemos Davi, Ismael e eu todos esses anos, senão fugir? O mar!", reconhece Adonias, ao se dar conta da repetição dos atos dos antepassados da Idade Média. Ou da semelhança com os judeus, que nunca têm o direito de esquecer, mesmo não o sendo mais.
Da confluência autorizada entre o rio Jaguaribe e o Jordão, onde o trem azul do Cariri nem faz mais curva, onde o Muro das Lamentações esbarra no Santo Sepulcro situado a poucos metros da estátua do Padim Cícero, no Juazeiro do Norte, e onde a seca da caatinga chama chuva forte para enxaguar mágoas, Ronaldo Correia de Brito extraiu um livro denso, preciso e, às vezes, esquemático.
Sobretudo pela busca insana de encaixar destinos irreconciliáveis e mundos tão diversos.
Ao final, diante da morte que não chega a tempo na hora e local combinados, branquelas, gentios e caciques retomam suas vidinhas sem discussão.
Afinal, o período de confrontos serviu para o resgate individual, um rápido intervalo entre o gênesis e o apocalipse de cada um dos nascidos na Galiléia -o lugar onde nunca se sabe o que é verdade.
GALILÉIA
Autor: Ronaldo Correia de Brito
Editora: Alfaguara
Quanto: R$34,90 (236 págs.)
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