STEINER, George. A Bíblia Hebraica e a divisão entre judeus e cristãos. Lisboa: Relógio D´Água, 2006. p.32-34.
O hebraico possui apenas dois «tempos» verbais (sendo «tempos», em si mesma, uma designação enganadora). As acções ou estão terminadas («perfeito») ou não terminadas («imperfeito»). Os modos simples, passivo, reflexivo, intensivo e causativo são interpretados através de formas diferentes do verbo. Uma vez mais, esta particularidade sintáctica ocasiona consequências de natureza hermenêutica importantes. O «mundo do tempo», as anotações da temporalidade na narrativa do Antigo Testamento, não se traduzem imediatamente no paradigma passado-presente-futuro do inglês ou de outras línguas europeias modernas. Este simples facto torna quase inacessível a dinâmica interna da profecia e da memória hebraicas. A profecia não se projecta, em qualquer sentido óbvio, no futuro, como acontece, por exemplo, nos oráculos gregos ou nas predições cristiano-helénicas. Os tempos oportunos das revelações de Deus por intermédio dos seus profetas são eternos. Num certo sentido, a profecia já se cumpriu, uma vez que é feita no «perfeito» na palavra divina. Noutro sentido, está eternamente presente. 0 que arde com a ira ou com a benção de Deus é o «agora». Num terceiro e completamente intraduzível sentido, a profecia também toca no «imperfeito», no ainda inacabado e portanto revogável (Jonas depende do paradoxo gramatológico de uma «imperfeição» alojada, por assim dizer, no eterno absoluto da determinação e sentença inicial de Deus).
p.34. Há, evidentemente, afinidades linguísticas entre o hebraico antigo e línguas tão próximas dele como o fenício, e, certamente, o úgrico. Elementos do úgrico, do cananeu e do aramaico podem ser localizados nos textos bíblicos. Todas as línguas faladas pelos homens e pelas mulheres têm as suas singularidades. Contudo, é justo que se diga que o conceito tradicional de hebraico bíblico como língua adâmica, como a primeira entre as línguas humanas, como sendo marcada unicamente pela semântica do modo como Deus a usa, reflecte, embora de maneira mítico-antropomórfica, uma intuição compreensível de «algo à parte». O hebraico do Antigo Testamento não se parece com nenhuma construção verbal-gramatical-semântica de que tenhamos conhecimento directo. A Lei, no fundo, é, em muitos aspectos, uma «lei em relação a si própria». A um nível manifestamente mais elevado, mais causador de danos do que o de qualquer outro corpus de linguagem, incluindo a poesia e a filosofia mais remotas e mais difíceis, as traduções do hebreu bíblico são interpretações erradas. Mesmo nas mãos de ouvintes e de artesãos da palavra tão geniais como Tyndale ou Lutero.
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