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Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Cláudia Andréa Prata Ferreira é Professora Titular de Literaturas Hebraica e Judaica e Cultura Judaica - do Setor de Língua e Literatura Hebraicas do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFRJ.

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sexta-feira, 23 de maio de 2008

Parricídios distintos (Frei Betto)

FREI BETTO

Ficamos indignados frente ao pai que assassina a filha e joga-a pela janela. O parricídio é monstruoso, como a pedofilia entre pai e filha, caso de Josef Fritzl, o austríaco que, por 24 anos, manteve a filha em cárcere privado.

Você é cristão? Acredita que Deus Pai, ofendido com os nossos pecados, assassinou o Filho na cruz? Que diabo de Deus é esse que exige a morte do próprio Filho para aplacar sua ira? Por que esse Deus não é execrado como os pais citados acima? Em literatura, migração dos sentidos é o que os gregos denominavam dipticon. Exemplo são os vitrais de igrejas: de um lado, Moisés; de outro, Jesus. Para o observador, o significado de um se transfere ao outro — Jesus é o novo Moisés. O “Gênesis” (22, 118) relata que Javé exigiu de Abraão, em prova de fé, sacrificar seu único filho, Isaac. O patriarca subiu a montanha disposto a matar o menino. Ao ver que Abraão não vacilaria no ato parricida, Javé, satisfeito, segurou-lhe a mão e evitou a morte de Isaac.

No Gólgota, o próprio Deus teria entregue o Filho à morte. Se Deus pratica o parricídio, por que tanta indignação quando um de nós o faz? Essa ótica teológica valoriza a culpa. Ora, devemos experimentar a graça de ser filhos de Deus. O amor. Abraão, criado no politeísmo e acostumado a prestar culto através da oferenda de primícias — das colheitas ao primogênito — descobre no alto da montanha que Javé, ao contrário de outros deuses, não quer a morte, quer a vida.

“Multiplicarei a tua posteridade como as estrelas do céu e os grãos de areia na praia” (22, 17). Ao descobrir Javé como Deus da Vida, Abraão poupa o filho.

Assim, Jesus não foi morto pela vontade de Deus, e sim pela maldade dos homens. A cruz não é o ápice de uma tragédia saída da pena de um perverso autor divino.

Jesus morre como prisioneiro político, assassinado por decisão de dois poderes que dominavam a Palestina do século I.

Ousou anunciar, no reino de César, um outro reino, o de Deus.

Atreveu-se a “profanar” o Templo de Jerusalém, qualificado de “covil de ladrões” (Mateus 21, 13).

O Deus de Jesus não era um déspota, e sim o Pai amoroso a quem o Filho tratava por “abba” (Marcos 14, 16), “querido papai” em aramaico. Jesus não veio para acusar-nos de incorrigíveis pecadores.

Veio nos revelar que, “como o Pai me amou, assim também eu vos amei; permanecei no meu amor” (João 15, 9).

FREI BETTO é escritor.

Extraído de:
O Globo, Opinião, página 7, em 23/05/2008.

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