por Henrique Rattner
Como explicar o ressurgimento das religiões e seus impactos na vida social e política neste início de século XXI, após e apesar dos séculos da Razão e do Iluminismo, os avanços das ciências físicas e biológicas, inclusive o evolucionismo de Darwin? Pode se alegar que as ciências não conseguiram explicar satisfatoriamente as origens o destino dos homens. Mas, apesar do aparente fracasso das ciências, também as religiões em suas mais diversas denominações, não conseguiram responder satisfatoriamente às questões existenciais, recorrendo todas elas à figura de um Deus onisciente e onipresente cuja existência dispensaria a comprovação empírica. Tanto George W. Bush quanto o papa Bento XVI falam da indiscutível necessidade de um "intelligent design" – concepção inteligente –, um conceito abstrato que não figura na percepção, cognição e interpretação do mundo dos bilhões de crentes de todas as religiões.
Se nas regiões menos desenvolvidas o fervor religioso ressurgiu como componente poderoso do despertar nacionalista e na luta contra o colonizador, o que dizer do renascimento das crenças religiosas no ocidente e sua expansão em progressão logarítmica, apesar da educação universal, pública e gratuita? Os pensadores iluministas pensaram que a modernidade – uma combinação de ciência, educação e democracia – acabaria com a necessidade da religião. É exatamente nos Estados Unidos, no Brasil e em outros países latino-americanos e até nos países escandinavos que a expansão das variantes evangélicas têm mais progredido em seu recrutamento de fiéis e a instalação de novas igrejas e templos não pára de crescer. Estima-se que o número de evangélicos no mundo alcançou o número de 500 milhões e os movimentos de massas geralmente intolerantes e agressivos contra os "infiéis" estão presentes no Islã, entre os pentecostais evangélicos, em grau menor entre os católicos (vide a "Opus Dei") e entre as várias seitas de judeus as quais, desde conservadores até ultra-ortodoxos, se digladiam pelo "direito" de ser os verdadeiros representantes da vontade divina. Missionários de todas essas religiões percorrem o mundo, dispondo de recursos financeiros não desprezíveis e criam escolas nas quais transmitem e interpretam os ensinamentos de seus livros sagrados, exigindo a estrita observância dos preceitos e dos mandamentos divinos, sejam eles os "mulás" e "aiatolás" muçulmanos; os reverendos, bispos ou apóstolos evangélicos ou os rabinos lideres de certas seitas. O ato de cantar e rezar em conjunto por parte de milhares de correligionários tem efeitos profundos sobre a psicologia dos crentes, reforçando sua fé e confiança no poder sobrenatural e dando aos indivíduos o sentimento de pertencer a algo maior do que eles próprios.
A reação esboçada pelos defensores do pensamento racional e científico não chega ao alcance das massas, mesmo nos países desenvolvidos – onde poucos teriam lido o livro de Richard Dawkins, "The God Delusion" (A Ilusão de Deus) ou de Christopher Hitchens, "God is not Great – How Religion Poisons Everything" (Deus não é grande – como a religião envenena tudo).
Não é somente pelo fracasso da ciência em proporcionar respostas plausíveis às indagações e ansiedades existenciais que podemos explicar o retorno à fé religiosa. Nas inseguranças e incertezas do mundo atual, prenhe de crises econômicas, políticas e culturais, os indivíduos se sentem perdidos, desamparados e confusos, tendo perdido a confiança nos governos, nos partidos políticos e suas ideologias. O pensamento neoliberal, que exacerba o individualismo, a competição e o sucesso material e monetário como alvos supremos na luta existencial, ignora a necessidade do ser humano de ter um convívio harmonioso e solidário com os outros, sejam eles vizinhos, companheiros no trabalho ou cidadãos da mesma comunidade. A História humana é repleta de perseguições, lutas e guerras entre fiéis de diferentes religiões, também nos países hoje considerados desenvolvidos. As várias Cruzadas; as invasões mouras da Península Ibérica; guerras religiosas na Europa Central até meados do século XVI; a expulsão sangrenta dos Huguenotes da França no século XVIII; o conflito armado entre católicos e protestantes na Irlanda; as guerras contra minorias étnicas e religiosas no Ruanda, Nigéria, Sri Lanka, Chechênia, Afeganistão, Iraque e na Terra Santa entre israelenses e palestinos carregam um forte conteúdo religioso como justificativa da violência contra os "infiéis".
A tendência mundial para reintroduzir a religião ou o apoio divino nas relações entre os povos, culturas e sistemas políticos diferentes não deve surpreender os estudiosos da História e da Cultura. Sua ascensão no fim do século XX e no início do século XXI pode ser atribuída à falência das crenças seculares, partidos políticos e governos que os sustentam e que facilitaram a ascensão de teocracias, sobretudo no mundo islâmico. Mas, o fenômeno do renascer da religião é universal, inclusive na China comunista e na Rússia pós "socialismo real", e indica uma forte tendência ao pluralismo, não somente religioso como também político. A idéia de Bush de exportar a "democracia" na ponta dos fuzis resultou no maior fracasso político e militar de nossa época.
Os principais atores nos conflitos violentos, inclusive de atentados contra civis inocentes, estão sendo formados e treinados por pregadores fanáticos, indivíduos que não são funcionários, civis ou militares de seus países. Por isso, a separação entre Igreja e Estado, tal como a preconizou o chanceler Otto von Bismarck, na segunda metade do século XIX, na Alemanha, parece fundamental sobretudo para o sistema educacional, universal, secular e gratuito. Por outro lado, não cabe ao Estado interferir nas crenças e práticas religiosas de seus súditos, mesmo quando constituem minorias ou imigrantes. Por outro lado, não deve invadir a esfera pública, tal como acontece atualmente no Irã, em outros países islâmicos, inclusive em Israel. A separação entre essas duas instituições não é um processo fácil e pacífico, como demonstram entre outros, a tensão permanente na Turquia, onde parte da população prefere claramente manter e praticar os preceitos do Islã, enquanto outra procura manter a natureza secular do Estado cujo fundador, Kemal Attaturk, continua sendo venerado, sobretudo pelos militares. Jawarharlal Nehru, quando ascendeu à presidência da Índia, queria "varrer" as religiões organizadas que "sempre defendem a fé cega e reações, dogmas, superstição e exploração em nome da preservação de interesses tradicionais". Gamal Nasser, presidente do Egito após o golpe militar que derrubou a monarquia, defendeu posição semelhante, perseguindo a Irmandade Muçulmana. A componente religiosa, quando entra nos conflitos étnicos, raciais e políticos, torna seu equacionamento e solução mais difícil e complexa. Como proceder quando os dois contendedores reclamam a posse de um determinado território em nome do direito divino? Israelenses e palestinos bem agradeceriam um palpite!
Extraído de:
Revista Espaço Acadêmico, número 83, abril de 2008.
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